sábado, 15 de fevereiro de 2020

Falando em currículo...

O CURRÍCULO: Currículo Funcional e Natural

Marina da Silveira Rodrigues Almeida
Consultora em Educação Inclusiva
 Psicóloga e Pedagoga Especialista
Instituto Inclusão Brasil
inclusao.brasil@iron.com.br

A Educação Inclusiva é um processo em que se amplia a participação de todos os estudantes nos estabelecimentos de ensino regular. Trata-se de uma reestruturação da cultura, da prática e das políticas vivenciadas nas escolas de modo que estas respondam à diversidade de alunos. É uma abordagem humanística e democrática, que percebe o sujeito e suas singularidades, tendo como objetivos o crescimento, a satisfação pessoal e a inserção social de todos.

A Educação Inclusiva atenta a diversidade inerente à espécie humana, busca perceber e atender as necessidades educacionais de todos os sujeitos-alunos, em salas de aulas comuns, em um sistema regular de ensino, de forma a promover a aprendizagem e o desenvolvimento pessoal de todos.

A prática pedagógica é coletiva, multifacetada, dinâmica e flexível requer mudanças significativas na estrutura e no funcionamento das escolas, na formação humana dos professores e nas relações família-escola. Com força transformadora, a educação inclusiva aponta para uma  sociedade inclusiva.

Tendo em vista a necessidade de elaboração de um novo currículo, partindo de uma nova visão sobre a criança, o conhecimento, a família, a sociedade, são traçadas as linhas mestras para este currículo.

Segundo estas linhas, que devem nortear os próximos avanços, o currículo será baseado em um escopo filosófico que contempla o contexto familiar e social, fazendo uso de estratégias flexíveis, abertas, dinâmicas e acessíveis a todos os educandos por meio de técnicas variadas de apresentação do programa. Valoriza o relacionamento da criança com sua família, com outras crianças e com demais adultos. Em contraposição ao currículo vigente, esse novo currículo precisa guiar-se pelas investigações sobre o desenvolvimento infantil, teorias da aprendizagem e os conceitos mais relevantes nas práticas educativas.

Em ouras palavras, vai além da ideia de instrução, de ensino como mera transmissão de conhecimentos, de técnicas e habilidades. Educar abrange, a lição do Relatório Jacques Delors, que aponta as quatro aprendizagens fundamentais, que ao longo da vida de todo sujeito, serão os pilares de seu conhecimento: aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a conviver.

Os professores devem receber orientação em desenvolvimento infantil e em metodologias educacionais. Devem receber em sua formação instrução a respeito dos avanços da Psicologia infantil.

Os objetivos centrais desse currículo são:

· Desenvolver competências em habilidades para a vida para o autoconhecimento, interação social, tomada de decisões, aprender a aprender e habilidades motoras;

· Adquirir conhecimentos socialmente acumulados nas Ciências, na Literatura e nas Artes, através de processo experimental de aprendizagem;

· Desenvolver atitude positiva diante da aprendizagem e do conhecimento;

· Desenvolver bom relacionamento com as crianças mais velhas e com os adultos de modo que estes sejam modelos positivos;

· Explorar as relações sociais e familiares;

· Desenvolver a compreensão e o gosto pela diversidade e pluralidade cultural e social. Nesses parâmetros, o currículo escolar é entendido como um conjunto de propostas que determinam, executam e avaliam atividades e conteúdos oferecidos de forma sistemática aos alunos (Costa, 1992). Deve prever estratégias e procedimentos de ensino que propiciem a participação do aluno em todas as etapas do trabalho, com a finalidade de contribuir para seu desenvolvimento pleno, considerando todo seu potencial, em todas as suas dimensões e ainda não perder de vista o meio no qual ele está inserido, ou seja, deve ser construído para cada um dos alunos, de açodo com suas necessidades (Falvey,1989).

Para o conhecimento do aluno é importante que uma avaliação inicial seja realizada antes da construção do planejamento de ensino que será utilizado para o aluno e mesmo antes da escolha do tipo de serviço a ser prestado. Essa avaliação deverá incluir os interesses do aluno, as motivações, as potencialidades, as necessidades acadêmicas, as habilidades sociais, as habilidades de comunicação, as habilidades motoras, o nível de habilidades de auto-manejo e as habilidades funcionais (Falvey,1989; Manzano,2001).

É imprescindível que haja, ainda, a coleta de informações com pessoas que sejam significativas e importantes na vida do aluno. Neste ponto, pode-se alterar o que tem ocorrido, muitas vezes, com os pais de pessoas severamente prejudicadas; a eles tem sido relegado um papel superficial no planejamento educacional do Plano Educacional Individualizado do aluno - P.E.I.

O Plano Educacional Individualizado - P.E.I é um programa elaborado para cada criança e desenvolvido interdisciplinarmente de maneira a valorizar suas capacidades, estabelecer metas e objetivos, delimitar serviços especiais necessários, orientando a forma de escolarização mais adequada, bem como os procedimentos de avaliação, desempenho e controle do mesmo (Manzano, 2001).

Assim, para a criação do currículo e seleção de habilidades tidas como mais importantes e funcionais e que por isso devam ser ensinadas, é necessário que o professor saiba identificar as necessidades de cada aluno, tanto em ambientes escolares, como não escolares (casa, restaurantes, supermercados etc.), respeitando sua faixa etária, suas potencialidades e limitações específicas. As habilidades a serem ensinadas, devem ser as que lhe serão importantes no futuro para o convívio familiar e em comunidade, para atuarem tão independentemente quanto possível, visando seu bem-estar. Esta seleção das habilidades torna-se um ponto crucial e o currículo a ser proposto constitui-se num desafio aos professores que atuam junto a essa população.

Um Currículo Funcional é aquele que facilita o desenvolvimento de habilidades básicas e essenciais à participação em uma grande variedade de ambientes integrados.

Nesta perspectiva, os componentes do currículo proposto por vários autores (Brown e outros 1979; Grossi e Almeida, 1996 etc.) deveriam prever:

Desenvolvimento de habilidades funcionais ou não, mas que estejam vinculadas à sua qualidade de vida;
Prioridade ao ambiente natural do aluno para realização das atividades e, principalmente;
Participação efetiva de pais no processo educacional, desde a identificação das habilidades, já que são eles quem melhor conhecem o aluno e poderiam identificar com maior precisão quais as habilidades que necessariamente deveriam ser adquiridas;
Adequação à idade cronológica;
Perspectiva do futuro para o indivíduo - Projeto de Vida, propondo o ensino de habilidades que lhes serão realmente necessárias e importantes para sua independência;
Planejamento educacional individualizado.

O Currículo Funcional e Natural procura selecionar procedimentos de ensino compatíveis com as capacidades dos alunos especiais, objetivando torná-los independentes e produtivos.

Segundo LeBlanc (1992), um currículo ideal está baseado primordialmente na investigação das variáveis que influenciam na aprendizagem. De maneira geral, a proposta deste currículo Funcional e Natural está baseada na funcionalidade das habilidades a serem adquiridas e na manutenção destas através de contingências naturais de aprendizagem. Abrange todos os contextos nos quais os alunos convivem escola, comunidade, família e trabalho. É um trabalho que se apóia no repertório de entrada do aluno, no conhecimento de seu meio e nas relações recíprocas entre eles.

É freqüente ainda que as crianças com deficiências múltiplas ou déficit intelectual acentuados sejam ensinadas através de seqüência de habilidades em função do desenvolvimento.

Isto resulta em situações em que as crianças têm que aprender em qualquer idade as habilidades correspondentes ao nível de desenvolvimento que apresentam.

Muitas vezes o aluno com deficiências severas ou profundas passam muito tempo na escola trabalhando habilidades artificiais ou inadequadas para a idade. Se considerarmos o tempo que os alunos com deficiências múltiplas ou déficit intelectual acentuados demoram a adquirir e manter qualquer habilidade, não há tempo nem justificação para que se passe muito tempo a ensinar itens que decorrem de uma hierarquia de desenvolvimento, e que são na generalidade pré-requisitos para outras habilidades.

Vamos verificar o que tem acontecido quando utilizamos o currículo tradicional, rígido e conteúdista:

O MEU FILHO

O meu filho tem síndrome de Down e está com 19 anos. Está na escola há 12 anos. Teve ensino individualizado durante vários anos e aprendeu imensas coisas!

Ele coloca 100 pregos num quadro de furos em menos de 10 minutos com 95% de êxito. Mas não consegue por moedas numa máquina de refrigerante. Se lhe pedirem, consegue apontar o nariz, braço, ombro, pé, perna, cabelo e orelha. Ainda não sabe bem o pulso, tornozelo, quadril ou sobre sua sexualidade. Mas não assua o nariz sozinho.

Consegue fazer um quebra-cabeça de animais com 100% de êxito e colorir um boneco dentro das linhas. Mas gosta mais de música e dançar. No entanto nunca ninguém lhe ensinou a ligar um rádio, um liquidificador...

Consegue dobrar folhas de papel ao meio e mesmo em quatro partes. Mas não consegue dobrar as suas roupas e guardá-las na gaveta.

Consegue separar blocos por cor, mesmo que tenham 10 cores diferentes e colocá-los na caixa de volta! Mas não consegue separar as roupas, por cor e as brancas separadas parar lavar...

O debate acerca das mudanças que devem ocorrer no sistema educativo, encontra aportes nas teorias de Jean Piaget, Erik Erikson e Vygotsky, na conceituação do sujeito da aprendizagem e da construção do conhecimento através da ação e interação desse sujeito com seus pares, com os adultos e sobre os objetos.

O educando sai do papel de receptor de uma transmissão hierárquica do conhecimento pelo sujeito detentor do saber, o professor, para o de sujeito de sua própria aprendizagem. Desta forma a aprendizagem deixa de ser um acúmulo de informações e passa ser uma construção do sujeito. Nessa perspectiva as metodologias de ensino precisam de revisão. A ação sobre os objetos ganha espaço e deve estar prevista nas aulas. A criança aprende agindo, ouvindo, falando, discutindo, julgando, decidindo, resolvendo conflitos.

O pensamento da criança deve ser desafiado sistematicamente. A criança deve refletir sobre o que faz, o que sente e o que aprende. O confronto de idéias, a troca de opiniões dos educandos entre si e com os educadores constróem a base do pensamento lógico.

Enfim, esses postulados impulsionam reflexões sobre como a criança pensa e como ela aprende. É um momento de reconceituar as bases curriculares e ressignificar os objetivos e propostas, bem como as práticas educacionais. Surge a necessidade de promover uma educação mais ativa, que forme cidadãos conscientes e atuantes. currículo deve estar centrado na criança e em sua vida. Cada criança é única. A criança cresce, desenvolve-se e aprende a seu tempo e a seu modo, não seguindo um padrão pré-determinado.

Bibliografia:

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto/Secretaria de Educação Especial.. Subsídios para organização e funcionamento de serviços de educação Especial: Área de deficiência Múltipla. Brasília: MEC/SEESP, 1995.

BROWN, L., et all.. A strategy for developing chronological age appropriate and functional curricular content for severely handcaped adolescents and young adults. Journal of Special Education. Madison: 1979. v. 1, n. 13. pp. 81 -90.

CARDOSO, M. C. F.. Abordagem Ecológica em Educação Especial: fundamentos básicos para o currículo. Brasília: MEC/CORDE, 1997.

CASTANEDO, C.. Bases Psicopedagógicas de la Educación Especial: Evaluación e Intervención. Madrid/Espanha: Editorial CCS, 2001.

COSTA, M. L. F.. Uma alternativa educacional para alunos com limitação intelectual moderada e severa. Integração. São Paulo: 1992. pp. 10-22.

DURAN, E.. Functional Language Instruction for Linguistically Different Students whit Moderate to Severe Disabilities. Journal of Reading Improvement. Madison: 1991. v. 1, n. 25. pp. 265-268.

FALVEY, M. A.. Community-based curriculum: instructional strategies for students with severe handicaps. Baltimore: Paul H. Brooks, 1989.

GROSSI, R. & ALMEIDA, M. A.. Situações da Rotina de Duas Crianças com Deficiência Mental Severa e com Comportamentos Autolesivos e Agressivos. In: C. Goyos & M. A. Almeida & D. Souza (Orgs.).. Temas em Educação Especial. São Carlos: UFSCAR, 1996.

HALBERSTADT, A. G.; DENHAM, S. A.; DUNSMORE, J. C.. Affective social Competence. Social Development. New York: Oxford University Press, 2001. v.1, n. 10. pp. 79–119.

LeBLANC, J. M.. El Curriculum Funcional en la Educación de la Persona com retardo mental. ASPADEM, Mallagra/Espanha: 1992.(mimeo)

MANZANO, E. S.. Princípios de Educación Especial. Madrid/Espanha: Editorial CCS: 2001.

MENDES, E. G.. Notas sobre a definição da área de Educação Especial. 1995a. (mimeo)

_____________.. Breve história da Educação Especial no Brasil. 1995b (mimeo)

_____________.. Raízes Históricas da Educação Inclusiva. Comunicação oral apresentada no I Seminário de Estudos Avançados sobre a Educação Inclusiva. Universidade do Estado de São Paulo, Marília. 2001.

NUNES, et all.. Pesquisa em Educação Especial na Pós-Graduação. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. (Questões Atuais em Educação Especial).

ORELOVE, F. P.; SOBSEY, D.. Educating children with multiple disabilities: a transdiciplinary approach. Baltimore: Paul H. Brookes, 1987.

PALOMINO, A. S.; GONZÁLEZ, J. A. T.. Educación Especial. Madrid/Espanha: Psicologia Pirâmide, 2002.

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